14 dezembro 2020

 Um outro nascimento

Todo o meu ser é um cântico negro

que te levará

fazendo-te durar

ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos

neste cântico eu suspirei tu suspiraste

neste cântico

eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.


A vida é talvez

uma rua comprida pela qual uma mulher segurando

um cesto passa todos os dias.


A vida é talvez

uma corda com a qual um homem se enforca num ramo

a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.


A vida é talvez acender um cigarro

na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor

ou o olhar ausente de um homem que passa

tirando o chapéu a um outro homem que passa

com um sorriso vazio e um bom dia.


A vida é talvez esse momento fechado

quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos

e está no sentimento

que eu irei pôr na impressão da Lua

e na percepção da Noite.


Num quarto grande como a solidão

o meu coração

que é grande como o amor

olha os simples pretextos da sua felicidade

o belo murchar das flores no vaso

a jovem árvore que plantaste no teu jardim

e o canto dos canários

que cantam para o tamanho de uma janela.


Ah!

este é o meu destino

este é o meu destino

o meu destino é

um céu que desaparece com a queda de uma cortina

o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis

reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia

o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias

e morrer na dor de uma voz que me diz

eu amo

as tuas mãos.


Irei plantar as minhas mãos no jardim

crescerei eu sei eu sei eu sei

e as andorinhas virão pôr ovos

no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.


Vou usar

um par de cerejas gémeas como brincos

e pôr pétalas de dália nas minhas unhas

há um beco

onde os rapazes que se apaixonaram por mim

se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado

os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras

e pensam nos sorrisos inocentes de uma rapariga

que foi levada pelo vento uma noite.


Há um beco

que o meu coração roubou

às ruas da minha infância.


A viagem de uma forma na linha do tempo

fecundando a linha do tempo com a forma

uma forma consciente de uma imagem

a regressar de uma carícia num espelho.


E é desta maneira

que alguém morre

e alguém segue vivendo.


Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato

que se esvazia num lago.


Eu conheço uma pequena e triste fada

que vive num oceano

e toca a flauta mágica do seu coração

suave, suavemente

pequena e triste fada

que morre com um beijo todas as noites

e com um beijo renasce a cada amanhecer.


            

       Forough Farrokhzad

19 novembro 2020

 Casa de cuervos


porque te alimenté con esta realidad

mal cocida

por tantas y tan pobres flores del mal

por este absurdo vuelo a ras de pantano

ego te absolvo de mí

laberinto hijo mío

no es tuya la culpa

ni mía

pobre pequeño mío

del que hice este impecable retrato

forzando la oscuridad del día

párpados de miel

y la mejilla constelada

cerrada a cualquier roce

y la hermosísima distancia

de tu cuerpo

tu náusea es mía

la heredaste como heredan los peces

la asfixia

y el color de tus ojos

es también el color de mi ceguera

bajo el que sombras tejen

sombras y tentaciones

y es mía también la huella

de tu talón estrecho

de arcángel

apenas pasado en la entreabierta ventana

y nuestra

para siempre

la música extranjera

de los cielos batientes

ahora leoncillo

encarnación de mi amor

juegas con mis huesos

y te ocultas entre tu belleza

ciego sordo irredento

casi saciado y libre

con tu sangre que ya no deja lugar

para nada ni nadie


aquí me tienes como siempre

dispuesta a la sorpresa

de tus pasos

a todas las primaveras que inventas

y destruyes

a tenderme — nada infinita —

sobre el mundo

hierba ceniza peste fuego

a lo que quieras por una mirada tuya

que ilumine mis restos

porque así es este amor

que nada comprende

y nada puede

bebes el filtro y te duermes

en ese abismo lleno de ti

música que no ves

colores dichos

largamente explicados al silencio

mezclados como se mezclan los sueños

hasta ese torpe gris

que es despertar

en la gran palma de dios

calva vacía sin extremos

y allí te encuentras

sola y perdida en tu alma

sin más obstáculo que tu cuerpo

sin más puerta que tu cuerpo

así este amor

uno solo y el mismo

con tantos nombres

que a ninguno responde

y tú mirándome

como si no me conocieras

marchándote

como se va la luz del mundo

sin promesas

y otra vez este prado

este prado de negro fuego abandonado

otra vez esta casa vacía

que es mi cuerpo

a donde no has de volver



Blanca Varela

poetisa peruana (1926-2009)

Caos



Silencio. Noche de las noches. Ausencia

De todo vigor, noche honda y oscura. Inercia

Preñada de futuras fuerzas,

Anhelos y deseos incompletos,

Creaciones en embrión frustradas,

Truncos intentos,

Ansias comprimidas y guardadas.

Revolución de gérmenes,

Anuncios de simientes.


Nebulosa sin mundos,

Instante sin presente,

Anhelante mirada hacia el futuro,

Ansias expectantes en espera.


Fuerza en donde no hay fuerza,

Tiempo donde aún el tiempo no comienza,

Silencio que va a ser resonancia,

Instante que será, y sin ser hoy tiene mañana,

Momento que va a empezar,

Onda que aún no es campanada

Porque falta la fuerza que hace el aire vibrar.


Eter que va a ser luz cuando tiemble y ondule,

Neblina que camina a condensarse,

Que será sólida cuando a sí misma se fecunde,

Cuando en revoluciones logre compenetrarse.


Caos, vientre que no es,

Hinchado de preñeces que serán.

¡Comience el despuntar de mundo invisibles

Que los soles y los astros formarán!


Surjan y vibren las grandes energías

Que duermen sin dormir en su neblina.



Vicente Huidobro, Adán 

poeta chileno (1893-1948)

26 agosto 2020

 Um outro nascimento



Todo o meu ser é um cântico negro

que te levará

fazendo-te durar

ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos

neste cântico eu suspirei tu suspiraste

neste cântico

eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.


A vida é talvez

uma rua comprida pela qual uma mulher segurando

um cesto passa todos os dias.


A vida é talvez

uma corda com a qual um homem se enforca num ramo

a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.


A vida é talvez acender um cigarro

na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor

ou o olhar ausente de um homem que passa

tirando o chapéu a um outro homem que passa

com um sorriso vazio e um bom dia.


A vida é talvez esse momento fechado

quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos

e está no sentimento

que eu irei pôr na impressão da Lua

e na percepção da Noite.


Num quarto grande como a solidão

o meu coração

que é grande como o amor

olha os simples pretextos da sua felicidade

o belo murchar das flores no vaso

a jovem árvore que plantaste no teu jardim

e o canto dos canários

que cantam para o tamanho de uma janela.


Ah

este é o meu destino

este é o meu destino

o meu destino é

um céu que desaparece com a queda de uma cortina

o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis

reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia

o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias

e morrer na dor de uma voz que me diz

eu amo

as tuas mãos.


Irei plantar as minhas mãos no jardim

crescerei eu sei eu sei eu sei

e as andorinhas virão pôr ovos

no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.


Vou usar

um par de cerejas gémeas como brincos

e pôr pétalas de dália nas minhas unhas

há um beco

onde os rapazes que se apaixonaram por mim

se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado

os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras

e pensam nos sorrisos inocentes de uma rapariga

que foi levada pelo vento uma noite.


Há um beco

que o meu coração roubou

às ruas da minha infância.


A viagem de uma forma na linha do tempo

fecundando a linha do tempo com a forma

uma forma consciente de uma imagem

a regressar de uma carícia num espelho.


E é desta maneira

que alguém morre

e alguém segue vivendo.


Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato

que se esvazia num lago.


Eu conheço uma pequena e triste fada

que vive num oceano

e toca a flauta mágica do seu coração

suave, suavemente

pequena e triste fada

que morre com um beijo todas as noites

e com um beijo renasce a cada amanhecer.


            

Forough Farrokhzad


05 dezembro 2017


You are welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cezariny


04 dezembro 2017

Interrogação

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do <<Cântico dos cânticos>>.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
Camilo Pessanha

16 novembro 2017



Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
E a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido


Alexandre O’Neill