03 outubro 2016

    Sebastião em sonho

    1.
    Uma mãe pariu a criança branca à luz da lua,
    À sombra da nogueira, do secular sabugueiro,
    Ébria do mosto das papoilas, do lamento dos melros;
    E silenciosas
    Inclinavam-se sobre essa mulher em compaixão as barbas de um rosto,
    Mudas no escuro da janela; e velhos trastes
    Ancestrais
    Apodreciam para ali; amor e fantasia outonal.

    Tão estranho era o dia do ano, a triste infância,
    Quando o rapazinho desceu suavemente para as frescas águas, para os
                         /argênteos peixes,
    Paz e continência;
    Quando, pétreo, se atirou sob corcéis desenfreados,
    Na noite cinzenta a sua estrela desceu sobre ele;
    Ou quando, pela mão gelada da mãe,
    Pastava ao cair da noite pelo outonal cemitério de São Pedro,
    Frágil cadáver jazia mudo no escuro da câmara
    E ele erguia, para olhá-lo as frias pálpebras.

    Ele, porém, era uma avezinha em troncos nus,
    O sino alongava-se no Novembro da noite,
    O silêncio do pai, quando a dormir descia a escada crepuscular.
     

    2.
    Paz da alma. Solitária noite de inverno,
    As negras silhuetas dos pastores no velho lago;
    Criança na cabana de palha; oh, como baixava
    Levemente o rosto em negra febre.
    Noite sagrada.

    Ou quando, pela dura mão do pai,
    Subia em silêncio o sombrio monte do Calvário
    E no entardecer, em nichos dos rochedos,
    A figura azul do Homem atravessava a sua lenda,
    Da ferida sob o coração corria purpúreo o sangue.
    Oh, como se elevava suavemente a cruz em escura alma.

    Amor; quando em escuros becos a neve derretia,
    E no velho sabugueiro ficava alegremente presa uma brisa azulada.
    Na abóbada da sombra da nogueira;
    E silenciosamente aparecia ao rapaz o seu anjo rosado.

    Alegria; quando em frescas salas soava à noitinha uma sonata,
    Nos vigamentos castanhos
    Uma borboleta azul saía da crisálida de prata.

    Oh, a proximidade da morte. Em pétreo muro
    Curvava-se uma cabeça amarela, a criança calada,
    Quando nesse mês de Março, a lua declinava.
     

    3.
    Sino rosado da Páscoa na abóbada tumular da noite
    E as vozes argênteas das estrelas,
    que fazem descer tremenda e sombria loucura da fronte de quem dorme.

    Oh, que silencioso o andar rio azul abaixo
    Meditando sobre coisas olvidadas, enquanto nos ramos verdes
    O chamamento do melro leva um estranho ser à decadência.

    Ou quando, pela ossuda mão do ancião,
    Passava à noite pela muralha arruinada da cidade
    E aquele levava no casaco negro uma criança rosada,
    O espírito do mal aparecia na sombra da nogueira.

    Tatear por sobre os verdes degraus do verão. Oh, como o jardim
    Caiu suavemente no silêncio castanho do outono,
    Aroma e melancolia do velho sabugueiro,
    Quando na sombra de Sebastião se extinguiu a voz argêntea do anjo.


    (1913)
                                  Georg Trakl
                        (Tradução de João Barrento)